Abjecionismo – Wikipédia, a enciclopédia livre
Abjecionismo (AO 1945: abjeccionismo)[1] foi uma corrente artística estreitamente ligada ao surrealismo, surgida em Portugal no final da década de 40 do século XX, cuja autoria se atribui ao poeta Pedro Oom, com a escrita de um Manifesto Abjeccionista, que se perdeu. Nela convergem os princípios da estética surrealista e uma postura poética de "insubmissão permanente ante os conceitos, regras e princípios estabelecidos"[2].
Precedentes
[editar | editar código-fonte]A moral ocidental considera abjectos certos aspectos como a droga, a blasfémia, o incesto, crimes de sangue, perversões sexuais, dejectos animais, o canibalismo, etc. A ideia de abjecção, incorporando tudo o que é degradação e aviltamento pessoal ou social, tudo o que se afasta do sistema de valores morais e sociais de uma comunidade ao ponto de ser repulsivo, é um tema com uma tradição particularmente forte na literatura francesa contemporânea, desde Baudelaire a Céline[3].
Trata-se de um tema relacionado com a ideia de descentralização ou desenraizamento do sujeito em relação a uma norma ou padrão, recorrente em poetas que cultivaram a degenerescência pessoal e a decadência social, como o fizeram em vários momentos os modernistas portugueses Mário de Sá Carneiro e Fernando Pessoa. No poema "Dactilografia" (19-12-1933), Álvaro de Campos confessa o seu "tédio fundamental", que lhe produz uma náusea profunda, íntima do sentimento de abjecção, uma vez que se trata de nausea vitae:
Que náusea da vida! Que abjecção esta regularidade! Que sono este ser assim!
O surrealismo, entendido como atitude perante a arte e a vida, pressupõe todo um esforço convergente no objectivo de efectuar a ascensão da consciência humana a um grau extremo. Breton, no seu Segundo Manifesto (1929), afirma a busca desse estado[4]:
Existe um certo ponto do espírito de onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser percebidos como coisas contraditórias. Ora, seria falso atribuir à actividade surrealista qualquer motivação que não fosse a esperança de determinar esse ponto.
Na atitude abjeccionista, esse ponto de síntese não é, no entanto, um ponto final e estático, mas o início de novos antagonismos[5]. Trata-se de uma atitude que, através do choque, do nojo, do inesperado, se apresenta como demanda de uma destruição / reconstrução. Torna-se negação da vida, no intuito de a destruir e reerguer enquanto linguagem poética num novo espaço de vida.
História
[editar | editar código-fonte]De acordo com Adelaide Tchen[6], estavam manifestas, na passagem para os anos 50, duas formas de encarar o futuro do movimento: do lado do Grupo Surrealista de Lisboa alguns artistas expressariam optimismo e conformismo para com a situação, enquanto que da parte do anti-grupo "Os Surrealistas" seriam redigidos discursos que afirmavam a ruína do movimento, e Mário-Henrique Leiria chegaria mesmo a considerar a acção do grupo como um malogro. Foi perante tão maus agouros sobre o futuro do movimento que Pedro Oom propôs uma nova saída para a surrealidade, uma concepção chamada pelo poeta de abjeccionismo e que representaria uma postura ética e estética de total insubmissão em relação às regras preestabelecidas, condenando, por exemplo, a possibilidade de o surrealismo vir a tornar-se uma "escola".
Esta concepção parece ter sido uma das poucas originalidades face ao surrealismo francês, já que aparenta denotar um regresso aos propósitos de contestação e destruição característicos dos dadaístas e a um sentido de derisão, desespero e agressão que retoma o espírito de empenhamento revolucionário manifesto nos primórdios do surrealismo[7]. De acordo com Oom, o Abjeccionismo basear-se-á na “resposta de cada um à pergunta: Que pode fazer um homem desesperado, quando o ar é um vómito e nós seres abjectos?”[8]
O Abjeccionismo viria a ter uma enorme influência sobre uma segunda geração surrealista que se reunia no Café Gelo nos finais da década de cinquenta. Neste grupo contavam-se, entre outros, Manuel de Lima, Luiz Pacheco, Mário Cesariny, Raul Leal, António José Forte, Ernesto Sampaio e Herberto Helder. De acordo com António José Forte, no seu artigo "Breve notícia, breve elogio do grupo do Café Gelo"[9], os ideais dos frequentadores do Café Gelo repetiriam as preocupações de António Maria Lisboa e Pedro Oom de que a poesia não estivesse relacionada a uma finalidade puramente estética, mas sim a uma postura ética perante a vida, ou seja, a um entendimento da actividade poética como uma forma de conhecimento e acção.
Exemplos vários de como diferentes artistas surrealistas portugueses desenvolveram o Abjeccionismo enquanto forma de expressão anti-literária, poderão ser encontrados na antologia Surrealismo Abjeccionismo: antologia de obras em português seleccionadas por Mário Cesariny de Vasconcelos (1963). É digna de nota, porque definidora da atitude abjeccionista, a epígrafe escolhida por Cesariny para abrir este volume: para além de incluir a passagem do Segundo Manifesto de Breton acima referida, acrescenta a seguinte paráfrase da autoria de Pedro Oom:
Existe um certo ponto do espírito de onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser e não deixam de ser apercebidos contraditoriamente.
Referências
- ↑ Infopédia. «Abjeccionismo - Infopédia». Infopédia - Porto Editora. Consultado em 20 de maio de 2022
- ↑ Pedro Oom, cit. in MARTINHO, Fernando J. B., Tendências Dominantes da Poesia Portuguesa da Década de 50, 1996, p. 64
- ↑ KRISTEVA, Julia, Pouvoirs de l´horreur: essai sur l´abjection (1980).
- ↑ BRETON, André. Manifestos do Surrealismo. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2001.
- ↑ BOECHAT, Virgínia, Do Amor em Vidro: António Maria Lisboa
- ↑ TCHEN, Adelaide Ginga. A aventura surrealista . Lisboa: Colibri, 2001.
- ↑ GUIMARÃES, Fernando, Simbolismo, Modernismo e Vanguardas, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda (1982).
- ↑ VASCONCELOS, Mario Cesariny de (Org.) A intervenção surrealista . Lisboa: Assírio & Alvim, 1966.
- ↑ FORTE, António José. Breve notícia, breve elogio do grupo do Café Gelo. Jornal de Letras e Artes , Lisboa, 18 fev. 1986.