Diálogo do Pessimismo – Wikipédia, a enciclopédia livre
O Diálogo do Pessimismo (em acádio: 𒀴 𒈪𒈪𒄨𒄨𒄥𒄥𒀭𒀭𒉌𒉌; romaniz.: Arad mitanguranni; "Servo, serve-me!" ou "Escravo, escute aqui!") é um antigo poema da Mesopotâmia composto na forma de um diálogo entre um mestre e seu escravo. Já recebeu diversas interpretações, mas é geralmente considerado um texto incomum por explorar a futilidade das ações humanas e é também considerado um exemplo de literatura sapiencial do Oriente Próximo.
Texto e datação
[editar | editar código-fonte]O Diálogo é uma composição levemente poética escrita na língua acádia, em cuneiforme, pouco após o ano 1000 AEC na Mesopotâmia. Foi descoberto em estado bem preservado em cinco diferentes tabuinhas de argila, com apenas 15 de suas 86 linhas estando danificadas.[1][2] Duas versões parecem ter sobrevivido, considerando o quanto a tabuinha da Babilônia difere das versões encontradas na Assíria.[3] Dos quatro exemplos Assírios, dois são de Assur e dois são da Biblioteca de Assurbanípal.[2] É improvavel que o texto seja anterior ao fim do II milênio AEC devido à referência a uma “adaga de ferro”, o que garantiria uma composição posterior à Idade do Bronze.[4]
O texto também foi conhecido em sua época pelo título Arad mitanguranni,[2] traduzido por Lentz 2021, p. 68 como "Servo, serve-me!" e por Brandão 2022, p. 14 como "Escravo, escute aqui!"
Publicação e título
[editar | editar código-fonte]O texto foi publicado pela primeira vez por G. Reisner em 1896, seguido pelos trabalhos de E. Ebeling entre 1917 e 1919. Porém, o título “Diálogo do Pessimismo” só foi atribuído por Stephen Herbert Langdon em seu artigo de 1923: “The Babylonian dialogue of pessimism”. Jacyntho Lins Brandão acredita que o fato deste título ter prevalecido demonstraria certo viés de interpretação[4] e acredita que o texto deveria ser visto como um "diálogo da hesitação".[5]
Conteúdo e estilo
[editar | editar código-fonte]O Diálogo do Pessimismo envolve uma conversa entre um mestre e seu escravo. Em cada uma das dez estâncias, divididas por um traço horizontal no original,[6] o mestre propõe algo a ser realizado e o escravo assinala bons motivos pelos quais seguir com a ideia. Entretanto, cada vez, o mestre muda de ideia e o escravo no que lhe concerne assinala motivos igualmente bons pelos quais não seguir com cada ideia. Os planos são:
Lentz 2021 | Brandão 2022 |
---|---|
Ir ao palácio[7] | Dirigir ao palácio[8] |
Se alimentar[9] | Jantar[10] |
Ir à estepe/caçar[11] | Dirigir até o descampado[12] |
Formar uma família[13] | Construir uma casa[14] |
Rebelar-se[15] | Fazer uma tramoia[16] |
Amar uma mulher[17] | Transar com uma mulher[18] |
Realizar um sacrifício[19] | Realizar uma oferenda[20] |
Fazer um investimento[21] | Emprestar como agiota[22] |
Fazer uma obra de caridade[23] | Fazer uma benfeitoria[24] |
Uma amostra do diálogo:
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—Tradução de Gleiton Lentz.[25] | —Tradução de Jacyntho Lins Brandão.[26] |
A décima estrofe é substancialmente diferente:
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—Tradução de Gleiton Lentiz.[27] | —Tradução de Jacyntho Lins Brandão.[28] |
O diálogo limita-se à duas pessoas (ao contrário dos diálogos de Platão, por exemplo), como era o costume na literatura sapiencial do Oriente Próximo. O texto tem muito em comum com a tradição local de literatura de controvérsia, incluindo sua visão cínica e questionadora.[29][30] Consoante a outros poemas de mesma temática, deve ter sido realizado oralmente, fora do contexto escolar.[31][32] Em vez de apresentar princípios universais ou abstratos que seriam aplicados a quaisquer situações, o escravo utiliza-se de imagens e exemplos concretos.[33][nota 1]
O diálogo também faz referências a outras obras literárias da região. Verso 76, de acordo com Speiser, citaria um verso no começo e no fim da Epopeia de Gilgamés, algo que Lambert diz não ser possível afirmar, e comenta que ambos os textos podem ter possuído uma fonte em comum. Os versos 86–87 citam um antigo provérbio da região.[34][35] Nathan Wasserman nota que o tom do Diálogo interage com o momento quando Shidúri, na versão paleo babilônica da Epopeia, estimula Gilgamés a adotar uma vida em família.[36][37] Os versos 62–69 podem aludir ao Grande Hino à Shamash (versos 118-127).[38][39]
Interpretação
[editar | editar código-fonte]A interpretação do texto divide especialistas. Alguns consideram como uma teodiceia. Outros o consideram como uma declaração sobre a absurdez da vida, pois não existem escolhas ou motivos definitivamente corretos, ou errados. A estância final acaba sendo o resultado lógico da questão: a escolha da não existência em vez da futilidade existencial.[40][41] Isto levou alguns intérpretes modernos a compararem o Diálogo com existencialistas modernos tais como Kierkegaard[42] e Camus.[43]
Uma interpretação oposta tem sua sua base na última resposta do escravo, vendo o Diálogo como uma sátira social. Desta forma, o escravo expõe o vacilo e a inutilidade de seu mestre aristocrático ao dar respostas conflituosas e clichês.[44][45]
É sugerida uma terceira interpretação via paralelos com o texto Monologue of the Righteous Suffer [en] e o Livro do Eclesiastes. De fato, o universo é enigmático, até mesmo sem significado, mas pode ter algum sentido conhecido pelos deuses (sugerido pelo comentário do escravo sobre o Céu e a Terra). Em vez de sugerir a morte devido ao desespero, o mestre quer que o escravo vá na sua frente para que ele possa perguntar aos deuses. A resposta final do escravo, cheia de sátira, reflete esta sugestão. O Diálogo pode ser satírico, sério ou ambos, mas nesta visão os deuses controlam os destinos, que nos são desconhecidos.[46] O sábio, tal como o escravo, reserva seu julgamento e considera suas possibilidades frente às ambiguidades da vida, mas mantendo seu senso de humor.[47]
Também existe a possibilidade, notada por E. A. Speiser, do texto ser de humor, ao afirmar que deveria ensinar-se a deus a “segui-lo como um cão”, algo impensável no contexto da época, além das respostas mecânicas do escravo.[4][nota 2] Willem H. Römer levantou a hipótese de que o texto fosse uma apresentação dramática-teatral.[49]
Paralelos com o Antigo Testamento
[editar | editar código-fonte]Existe um paralelo temático entre o Diálogo do Pessimismo e o Livro dos Eclesiastes no Antigo Testamento. As afirmações e negações realizadas pelo escravo no decorrer do Diálogo são parecidas com as ações e suas oposições dadas em Eclesiastes 3:1-9 (“Há tempo de nascer, e tempo de morrer…”). Eclesiastes, tal como o Diálogo, já recebeu interpretações pessimistas e otimistas, além de também ser aberto à interpretação de que a dificuldade de compreender o universo e a vida humana mostram nossas limitações e o conhecimento transcendental de Deus.[50]
Também existem alguns paralelos e contrastes com o Livro de Jó. Tal como o Diálogo, Jó também considera a morte como uma opção face às contradições da vida (Jó 3:2-13), mesmo que ele jamais contemple o suicídio. Ainda mais, Jó não conclui com um tom mórbido, porém este tema esteve presente de forma mais explicita no começo. O uso da ironia e a sátira para estudar os mistérios da vida está presente tanto no Diálogo quanto em Jó (ex: Jó 9:39-31).[41]
Um provérbio que aparece no fim do diálogo, “Quem é tão alto a ponto de subir aos céus?/Quem é tão vasto a ponto de abarcar a terra?", [51][nota 3] tem diversos paralelos bíblicos, entre os quais são os versos de abertura dos provérbios de Agur (Provérbios 30:4); Deuteronômio 30:11-14; Jó 11:7-9 e Jó 28:12-18.[52][53][nota 4]
Ver também
[editar | editar código-fonte]Referências
- ↑ Bottéro 1995, p. 252.
- ↑ a b c Brandão 2022, p. 14.
- ↑ Lambert 1960, p. 143.
- ↑ a b c Brandão 2022, p. 15.
- ↑ Brandão 2022, pp. 37–38.
- ↑ Brandão 2022, p. 19.
- ↑ Lentz 2021, p. 68, 2º verso.
- ↑ Brandão 2022, p. 16, [1] 2º verso.
- ↑ Lentz 2021, p. 68, 11º verso.
- ↑ Brandão 2022, p. 17, [2] 11º verso.
- ↑ Lentz 2021, pp. 68-69, 18º e 19º versos.
- ↑ Brandão 2022, p. 17, [3] 18º verso.
- ↑ Lentz 2021, p. 69, 30º verso.
- ↑ Brandão 2022, p. 17, [4] 30º verso.
- ↑ Lentz 2021, p. 69, 40º verso.
- ↑ Brandão 2022, p. 18, [5] 40º verso.
- ↑ Lentz 2021, p. 69, 47º verso.
- ↑ Brandão 2022, p. 18, [6] 47º verso.
- ↑ Lentz 2021, p. 70, 54º verso.
- ↑ Brandão 2022, p. 18, [7] 55º verso.
- ↑ Lentz 2021, p. 70, 63º verso.
- ↑ Brandão 2022, p. 18, [8] 63º verso.
- ↑ Lentz 2021, p. 70, 71º verso.
- ↑ Brandão 2022, p. 19, [9] 71º verso.
- ↑ Lentz 2021, pp. 69-70, Versos 46-52.
- ↑ Brandão 2022, p. 18, [6] Versos 46-52.
- ↑ Lentz 2021, p. 71, Versos 79-86.
- ↑ Brandão 2022, p. 19, [6] Versos 79-86.
- ↑ Toorn 1991.
- ↑ Brandão 2022, p. 38.
- ↑ Speiser 1954, p. 105.
- ↑ Denning-Bolle 1987, p. 232.
- ↑ Denning-Bolle 1987, pp. 226, 229.
- ↑ Lentz 2021, p. 70, Nota 8.
- ↑ Speiser 1954, p. 104f.
- ↑ Brandão 2022, p. 25.
- ↑ Brandão 2022, p. 44, 15.
- ↑ Hurowitz 2007.
- ↑ Brandão 2022, p. 31.
- ↑ Lambert 1960, pp. 139–142.
- ↑ a b Hartley 2008, p. 353f.
- ↑ Metcalf 2013.
- ↑ Helle 2017, p. 218.
- ↑ Speiser 1954, pp. 103–105.
- ↑ Mark 2023.
- ↑ Bottéro 1995, pp. 259–267.
- ↑ Denning-Bolle 1987, p. 229.
- ↑ Brandão 2022, p. 29.
- ↑ Brandão 2022, p. 20.
- ↑ Bottéro 1995, pp. 260–262.
- ↑ Lentz 2021, p. 71, Versos 83 e 84.
- ↑ Kim 2008, p. 430.
- ↑ Samet 2010, pp. 2-3.
- ↑ Brandão 2022, p. 35.
Notas
- ↑ Bottéro 1995 nota diversos exemplos onde a mente mesopotâmica não formulou princípios universais ou abstratos, mas, em vez disso, se empregou de listas, às vezes exaustivas, de momentos e exemplos.
- ↑ O igualamento de deuses aos cães também é vista na tabuinha 11 da Epopeia de Gilgamés.[48]
- ↑ Traduzido por Brandão 2022, [10] Versos 83 e 84, p. 19 como: “Quem é tão alto que ao céu suba?/Quem é tão extenso que a terra abarque?"
- ↑ Jacyntho Lins Brandão nota um paralelo destes versos com a Versão A de Bilgames e Huwawa: "um homem não pode estender-se até o céu, não importa quão alto,/ um homem não pode abarcar uma montanha, não importa quão largo.”[54]
Texto
[editar | editar código-fonte]- Anônimo (2021). «𒀴 𒈪𒈪𒄨𒄨𒄥𒄥𒀭𒀭𒉌𒉌» Arad mitanguranni [Servo, serve-me!]. Nota do Tradutor (em acadiano) (23). Desterro: Revista de Tradução Literária e Biblioteca Digital. pp. 62–67. ISSN 2177-5141
Traduções
[editar | editar código-fonte]- Anônimo (2021). «Servo, serve-me!». Nota do Tradutor (23). Traduzido por Gleiton Lentz. Desterro: Revista de Tradução Literária e Biblioteca Digital. pp. 68–71. ISSN 2177-5141
- Brandão, Jacyntho Lins (2022). «Diálogo do Pessimismo ou Elogio da Hesitação». Rio de Janeiro: Laboratório de História Antiga. Phoînix. 28 (2): 14-47. ISSN 2527-225X
Bibliografia
[editar | editar código-fonte]- Bottéro, J. (1995). «The Dialogue of Pessimism and Transcendence». Mesopotamia: Writing, Reasoning, and the Gods. Traduzido por Zainab Bahrani; Marc Van de Mieroop. Londres: The University of Chicago Press. pp. 251–267. ISBN 0-226-06727-0
- Denning-Bolle, Sara J. (1987). «Wisdom and Dialogue in the Ancient Near East». Numen 34. XXXIV (2): 214–234. doi:10.2307/3270085
- Hartley, J. E. (2008). «Job 2: Ancient Near Eastern Background.». In: T. Longman III; P. Enns. Dictionary of the Old Testament: Wisdom, Poetry & Writings. [S.l.]: Inter-Varsity Press. pp. 316–361. ISBN 978-0-8308-1783-2
- Hurowitz, Victor Avigdor (2007). «An Allusion to the Šamaš Hymn in the Dialogue of Pessimism.». In: R. J. Clifford. Wisdom Literature in Mesopotamia and Israel. [S.l.]: Society of Biblical Literature. pp. 33–36. ISBN 978-1-58983-219-0
- Helle, S (2017). «Babylonian Perspectives on the Uncertainty of Death: SB Gilgamesh X 301-321». KASKAL. 14: 211–219. ISBN 978-88-94926-03-3. ISSN 1971-8608
- Kim, K (2008). «Lemuel and Agur». In: T. Longman III; P. Enns. Dictionary of the Old Testament: Wisdom, Poetry & Writings. [S.l.]: Inter-Varsity Press. pp. 427–431. ISBN 978-0-8308-1783-2
- Lambert, W. G. (1960). «The Dialogue of Pessimism». Babylonian Wisdom Literature. Reino Unido: Clarendon Press. pp. 139–149. ISBN 0198154240
- Metcalf, Christopher (2013). «Babylonian Perspectives on the Certainty of Death». KASKAL. 10: 255–267. ISSN 2036-5845. doi:10.1400/217190
- Mark, Joshua J. (2 de fevereiro de 2023). «Dialogue of Pessimism». World History Encyclopedia
- Speiser, E. A. (1954). «The Case of the Obliging Servant». Journal of Cuneiform Studies. 8 (3): 98–105. doi:10.2307/1359094
- Samet, Nili (2010). «The Tallest Man Cannot Reach Heaven, The Broadest Man Cannot Cover Earth - Reconsidering the Proverb and Its Biblical Parallels». Journal of Hebrew Scripture. 10. 13 páginas. ISSN 1203-1542. doi:10.5508/jhs.2010.v10.a18
- Toorn, Karel Van Der (1991). «The Ancient Near Eastern literary dialogue as a vehicle of critical reflection». In: G. J. Reinink; H. L. J. Vanstiphout. Dispute Poems and Dialogues in the Ancient and Mediaeval Middle East. Col: OLA. 42. [S.l.]: Leuven: Peeters. pp. 59–75. ISBN 90-6831-341-X