Al-'Awasim – Wikipédia, a enciclopédia livre
Al-'Awāṣim (em árabe: العواصم, "defesas, fortificações"; sing. al-'āṣimah, "protetora") era um termo árabe utilizado para se referir ao lado muçulmano da zona fronteiriça entre o Império Bizantino e os Califados Omíada e Abássida na Cilícia, no norte da Síria e na Alta Mesopotâmia.[1] Começou a ser utilizado juntamente com a primeira onda das conquistas muçulmanas e durou até o meio do século X, quando a região foi invadida pelos bizantinos. A região abrangia as marcas de vanguarda, uma cadeia de fortalezas conhecidas como al-thughūr (em árabe: الثغور; sing. الثغر, al-thagr, "fissura, abertura") e as regiões imediatamente atrás das fronteiras, conhecidas como al-'awāṣim também. Do lado bizantino, o equivalente às marcas muçulmanas eram os distritos conhecidos como clisuras e as guarnições de fronteira chamadas de ácritas.
O termo thughūr também foi utilizado para designar as marcas em Alandalus e na Transoxiana. O termo foi reutilizado pelo Sultanato Mameluco no século XIV, quando as áreas que correspondiam tradicionalmente aos awāṣim e thughūr no norte da Síria e no norte do Eufrates caíram sob seu controle.[2]
História e organização
[editar | editar código-fonte]Já a partir do final da década de 630, após a rápida conquista muçulmana da Síria, uma larga zona, não reivindicada pelos bizantinos e nem pelos árabes e virtualmente deserta (conhecida em árabe por al-Ḍawāḥī, "terras exteriores" e em grego como τὰ ἄκρα, ta akra - "as extremidades"), emergiu entre as duas potências na Cilícia ao longo dos montes Tauro e Anti-Tauro. Tanto o imperador bizantino Heráclio (r. 610–641) quanto o califa bem guiado Omar (r. 634–644) destruíram tudo o que havia na região tentando transformá-la numa barreira efetiva entre seus domínios.[1][3] Mesmo assim, o objetivo final dos califas permanecia sendo a conquista definitiva do Império Bizantino como eles já tinham feito na Síria, no Egito e no Norte da África, e foi somente depois do fracasso do Segundo Cerco Árabe de Constantinopla em 717-718 que obrigou-os a mudar de plano: embora os raides na Anatólia continuassem, o objetivo de conquista foi abandonado e a região de fronteira começou a adquirir uma forma mais ou menos permanente. Pelos dois séculos seguintes, fortalezas na região podiam mudar constantemente de mãos, mas as linhas gerais da fronteira árabe-bizantina permaneceram essencialmente inalteradas.[4][5][6] Por isso, o termo al-thughūr, que inicialmente significava "fissura, abertura" e era o nome de fato das regiões fronteiriças, passou a significar "fronteira" e a ser empregado em frases como "Thughūr al-Islām" ("fronteira do islã") ou "Thughūr al-Rūmīya" ("fronteira com os romanos (Rûm)").[1][7][8]
Este processo foi marcado por uma consolidação gradual da zona antes deserta e a sua transformação numa região de fronteira assentada e fortificada, especialmente após os bizantinos terem abandonado a Cilícia durante o reinado do califa omíada Abedal Maleque ibne Maruane (r. 685–705). Os muçulmanos começaram então a se mudar para a região, reocupando-a e restaurando as antigas cidades e fortalezas. O processo começou sob os omíadas, mas se intensificou na época dos primeiros abássidas, especialmente durante o reinado de Harune Arraxide (r. 786–809).[1][6] Assim, uma linha de fortaleza lentamente se consolidou, indo de Tarso, na costa do Mediterrâneo, até Melitene (ar. Malátia) e Camacha (ar. Ḥiṣn Kamkh), no alto Eufrates.[9][10][11] As fortalezas geralmente estavam em vales ou desfiladeiros, nas maiores intersecções nas vias de acesso à região e nas entradas dos passos de montanha.[12]
A região de fronteira toda era inicialmente parte do junde (uma das divisões administrativas militares na qual Bilade Xame - a Síria muçulmana - foi dividida) de Homs e, depois de 680, do junde de Quinacerim (gr. Cálcis), até que Harune Arraxide criasse o jund al-'Awāṣim em 786, compreendendo toda a região a partir da fronteira bizantina ao norte e oeste até o Eufrates a leste e uma linha que corria ao sul de Antioquia (ar. Antáquia), Alepo (Ar. Ḥalabe) e Hierápolis Bambice (ar. Mambije) ao sul. Hierápolis e, posteriormente, Antioquia, foram as primeiras capitais provinciais.[12][13] A região propriamente dita de al-'Awāṣim servia como uma segunda linha de defesa atrás dos thughūr, indo do norte da Síria e englobando as cidades de Bagras, Baias, Gaziantep (Ar. Dulūk; gr. Doliche ou Teluque), Alexandreta (Ar. Iskandarīya), Cirro (ar. Ķūrus), Ra'bān e Tizin.[9] O Thughūr, a zona de fronteira de fato, foi dividido em dois setores: Síria (Thughūr al-Sha'mīya) e Al-Jazira (Thughūr al-Jazīrīya), separadas, grosso modo, pelos montes Amano. Os setores não tinham capitais propriamente ditas, mas Tarso e Melitene eram as cidades mais importantes da Cilícia e da Mesopotâmia, respectivamente. As várias cidades localizadas no Thughūr ou foram absorvidas pelo jund al-'Awāṣim ou permaneceram como distritos separados e independentes. Por volta do século X, porém, os dois termos se misturaram e eram intercambiáveis.[1][14][15] Também a partir daí, com o avanço bizantino sobre a região da Armênia, a zona de fronteira à volta de Diar Baquir se tornou um terceiro setor, Thughūr al-Bakrīya.[16]
No setor da Cilícia, Mopsuéstia (ar. al-Maṣṣīṣa) foi a primeira cidade a ser reocupada e guarnecida, ainda sob o governo omíada, que assentaram ali 300 soldados e suas famílias em 703, um número que subiu para 4 000 sob os abássidas. Adana foi a próxima, em 758-760, e Tarso se seguiu em 787-788. Esta rapidamente se tornou o maior assentamento da região e a base de operações árabe mais importante para operações contra os bizantinos, contando com 4 000 - 5 000 soldados como guarnição. Outras importantes fortalezas na Cilícia, que, porém, eram pouco mais do que postos militares, eram Anazarbo (ar. Ayn Zarba), al-Haruniya, fundada por Harune Arraxide, Tall Gubair e al-Kanīsat al-Sawdā. A elas se juntava uma grande quantidade de pequenos fortes por toda planície da Cilícia, guarnecidos com regimentos de mais ou menos doze soldados[10] No terreno mais montanhoso da fronteira mesopotâmia, as principais fortalezas estavam localizadas nas regiões mais férteis em vales relativamente isolados que controlavam os passos pelas montanhas: Germaniceia (ar. Maracha, atual Kahramanmaraş), reconstruída por Moáuia I (r. 661–680) e novamente por Harune Arraxide, Adata (ar. al-Hadata), também restaurada pelos primeiros califas abássidas e guarnecida com 4 000 soldados, e Melitene, que fora colonizada pelos omíadas, destruída pelos bizantinos e reconstruída novamente com uma guarnição de 4 000 homens em 757-758. Outras fortalezas menos importantes no setor mesopotâmio eram Salago, Cessúnio (ar. Kaisum), Sozópetra (ar. Ḥiṣn Zibaṭra), Samósata (ar. Sumaisaṭ), Cláudias (ar. Hisn Qalawdhiya) e Chárpete (ar. Hisn Ziyad), enquanto que as cidades muradas de Teodosiópolis (ar. Qālīqalā, atual Erzurum) e Camacha marcavam o limite setentrional do domínio muçulmano. Algumas das fortalezas na região norte de al-'Awāṣim, com Gaziantep ou Cirro, eram também por vezes contadas como parte deste setor.[17][18] O Thughūr al-Bakrīya incluía, segundo Cudama ibne Jafar, Samósata, Ḥānī, Malikyan, Gamah, Ḥaurān e al-Kilis.[16]
Os califas repopularam a região trazendo colonos e soldados regulares da Síria, mas também persas, eslavos, cristãos árabes e povos das fronteiras orientais do mundo muçulmano: colonos do Grande Coração, a tribo turca dos saiabija e os jates da Índia.[19][20] As tropas regulares aquarteladas ali recebiam o benefícios de impostos menores (o dízimo ou ushr ao invés do caraje, o imposto territorial), salários maiores e pequenas propriedades rurais (qaṭā'i). No começo do período abássida, eram mais de 25 000, metade vindos do Coração e o resto, da Síria e da Alta Mesopotâmia. A eles se juntou um complemento de voluntários, motivados principalmente pelo fervor religioso da jihad contra os bizantinos, mas que também recebiam salários do estado.[17][21][22]
Expedições anuais
[editar | editar código-fonte]Já pelo século IX, as expedições militares árabes contra os bizantinos lançadas a partir da zona de fronteira haviam adquirido um caráter quase ritual e eram minuciosamente organizadas. De acordo com o geógrafo Cudama ibne Jafar, o padrão habitual das incursões árabes incluía uma expedição inicial na primavera (entre 10 de maio e 10 de junho), época de pasto abundante para os cavalos, seguida, após mais ou menos um mês de descanso, por um raide de verão (10 de julho a 8 de setembro), geralmente a principal campanha anual, e, à vezes, por um raide de inverno em fevereiro-março[9][23][24] Nas palavras do estudioso Hugh N. Kennedy, "o ṣā’ifa (raide de verão) era tão importante para as funções simbólicas e rituais do califa quanto a organização e a provisão de líderes para a haje (peregrinação) anual para Meca".[25] Tudo isso custava muito dinheiro ao tesouro abássida. Sob Harune Arraxide, a cobrança de imposto no setor da Cilícia coletou 100 000 dinares de ouro, que foram gastos em obras públicas, pagamento de salários, espionagem e outras atividades. Esta soma não inclui o custo das expedições, que geralmente estava entre 200 e 300 mil dinares de ouro. A receita do setor da Mesopotâmia era de aproximadamente 70 000 dinares, a qual se somava entre 120 e 170 mil dinares anuais, também gastos em fortificações e no pagamento do exército.[26]
A zona de fronteira era ferozmente contestada entre os árabes e os bizantinos. Ataques e contra-ataques eram uma característica permanente deste tipo de guerra e os fortes de ambos os lados eram frequentemente capturados e arrasados. Às vezes, eram ocupados, mas nunca por muito tempo. Como resultado, a região geralmente era despopulada e requeria uma nova leva de colonos. Há, mesmo assim, evidências de alguma prosperidade, baseada na agricultura e no comércio, especialmente durante a segunda metade do século IX, quando a região se tornou o centro de uma rota comercial que ligava Baçorá com o norte da Síria e chegava até Constantinopla[19][27]
Emirados independentes
[editar | editar código-fonte]No século IX, o controle abássida sobre o Thughūr evoluiu para um conjunto de emirados semi-independentes, sediados principalmente em Tarso, Melitene e Erzurum. Após 842, com o declínio do poder abássida, eles foram abandonados à própria sorte para se defenderem de um ressurgente Império Bizantino. A Batalha de Lalacão, em 863, eliminou o poder de Melitene, alterando a balança de poder na região e começando a gradual invasão bizantina nas fronteiras árabes.[28][29][30] Com o início de um prolongado período de crise no Califado Abássida após 928, o controle muçulmano das cidades fronteiriças passou para os iquíxidas e os hamadânidas. Os bizantinos, comandados por João Curcuas, conquistaram o setor da Mesopotâmia na década de 930 e, embora o emir de Alepo hamadânida, Ceife Adaulá (r. 946–967), tenha conseguido interromper a invasão, sua vitória foi temporária: em 964-965, o imperador Nicéforo II Focas (r. 963–969) capturou o setor da Cilícia e, logo depois, Antioquia, e transformou o Emirado de Alepo num estado vassalo.[28][31][32][33]
Zona de fronteira mameluca-turca
[editar | editar código-fonte]O al-thughūr wa-l-'awāṣim mameluco tinha como objetivo defender a Síria dos estados turcos da Ásia Menor e do Cáucaso, incluindo, num estágio avançado, o Império Otomano. Assim como o modelo árabe anterior, o Thughūr estava dividido em duas marcas, a Síria e a Mesopotâmia, e também contava com uma zona na retaguarda ao longo do norte da Síria. Os mamelucos encarregaram a defesa da marca Síria (e da Cilícia) ao beilhique turco vassalo dos ramadanidas, enquanto que o beilhique dos dulcadíridas fazia o mesmo papel no setor mesopotâmio. Para garantir o controle sobre a região fronteiriça e para manter os beilhiques separados e sob controle, os mamelucos também mantinham guarnições em sete importantes locais: Tarso, Aias, Serfendikar, Sis, Darende, Malatia e Tefrique[34] Calcaxandi relata o nome das subdivisões (niyābāt) do Thughūr mameluco assim: oito para o setor sírio (Malatia, Tefrique, Darende, Elbistão, Aias, Tarso e Adana, Serfendikar e Sis) e três para o mesopotâmio (al-Bira, Qal'at Ja'bar e Arrua).[2][35]
Ver também
[editar | editar código-fonte]Referências
- ↑ a b c d e Streck 1987, p. 515.
- ↑ a b Honigmann 1987, p. 739.
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Bibliografia
[editar | editar código-fonte]- El-Cheikh, Nadia Maria; R. R. Milner-Gulland (2004). Byzantium Viewed by the Arabs (em inglês). [S.l.]: Harvard University Press. ISBN 0-932885-30-6
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